Sale and leaseback no setor da saúde: o caso Newport vs. Hypera e os riscos contratuais na regularização de imóveis industriais

Paula Aranha Hapner
Introdução
As operações imobiliárias no setor da saúde muitas vezes enfrentam exigências regulatórias e de normas específicas que podem impactar as obrigações assumidas pelos contratantes. Os negócios jurídicos celebrados neste tipo de operação costumam ser sofisticados e, por esta mesma razão, na hipótese de disputas entre as partes, os litígios envolvem igual complexidade. Há, em regra, uma pluralidade de questões jurídicas e técnicas, atreladas diretamente à redação dos contratos e das provas produzidas pelas partes.
Um exemplo que ilustra parte dos desafios enfrentados pelos contratantes é a ação movida pelo Newport Logística Fundo de Investimento Imobiliário (FII NEWL) contra a Hypera S/A, uma das maiores farmacêuticas do país, em trâmite na 27ª Vara Cível de São Paulo (processo nº 1048868-12.2025.8.26.0100), com valor atribuído à causa de mais de R$ 15 milhões, relativa a um contrato na modalidade de sale and leaseback.
O contrato de sale and leaseback
O contrato de sale and leaseback (SLB), ou “venda com arrendamento de retorno”, é uma operação jurídica composta por dois contratos celebrados simultaneamente entre as mesmas partes: um de compra e venda e outro de locação. Nessa estrutura, o proprietário de um bem – geralmente um imóvel ou equipamento – o vende a um terceiro e, no mesmo ato, firma contrato de locação para continuar utilizando o bem. Trata-se de uma estratégia que permite à sociedade empresária vendedora converter ativos imobilizados em capital de giro, sem abrir mão do uso do bem essencial às suas atividades.
A figura do sale and leaseback tem origem no sistema jurídico da common law e a importação desse modelo para o ordenamento jurídico brasileiro se deu de forma adaptada, considerando as diferenças estruturais entre os sistemas de common law e civil law. No Brasil, embora não haja previsão legal específica, a operação é viabilizada por meio da combinação de contratos típicos – compra e venda e locação – amparados pela autonomia privada e pela função econômica do negócio.
A operação de SLB exige atenção especial à redação contratual, na medida em que a pessoa jurídica vendedora, em regra, busca liquidez com manutenção da posse direta de ativos essenciais, mas, a depender do conteúdo do contrato, estará assumindo riscos relevantes quanto ao estado do bem e quanto aos direitos que possui sobre ele, tendo em vista que deixará de deter a propriedade.
O caso: licenças exigidas pelo Corpo de Bombeiros
A disputa entre o fundo Newport e a Hypera chegou ao Judiciário em razão de um contrato de sale and leaseback celebrado em 2021, por meio do qual a Hypera vendeu ao fundo Newport um centro de distribuição e galpão fabril em Goiânia (GO), com área superior a 228 mil m². A farmacêutica permaneceu como locatária do imóvel, que havia sido construído por ela mesma.
Após a conclusão da operação, foram identificadas irregularidades no sistema de combate a incêndio, especialmente nos sprinklers e na bomba de hidrantes. Segundo alega o autor da ação judicial, fundo Newport, o licenciamento do galpão fabril perante o Corpo de Bombeiros e os custos com as medidas necessárias era de responsabilidade da Hypera, que deixou de cumprir sua obrigação. O FII NEWL afirma que o inadimplemento por parte da Hypera teria levado à celebração do Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) com o Corpo de Bombeiros e o Estado de Goiás, para evitar a lacração do imóvel e prejuízos decorrentes. Do mesmo modo, que teria contratado os serviços para a execução das obras de adequação conforme exigências do referido TAC, no valor de mais de R$ 13 milhões.
A Hypera, por sua vez, sustenta que entregou o imóvel com licenças válidas e que as novas exigências do Corpo de Bombeiros decorreram de normas técnicas posteriores à data do contrato. Defende, ainda, que o TAC foi firmado unilateralmente pelo FII NEWL, sem sua anuência, e não poderia gerar obrigações contra ela.
O processo encontra-se em fase inicial, tendo sido proferida a decisão saneadora em 04/07/2025. O juízo da 27ª Vara Cível de São Paulo entendeu que já foi decidido, em outro processo acobertado pela coisa julgada, que as obrigações assumidas pelo fundo Newport no âmbito do TAC não podem ser oponíveis à Hypera, em razão do princípio da relatividade dos contratos. Por outro lado, que a análise da violação das cláusulas contratuais ainda pode ser realizada e que eventuais danos/custos causados por inadimplemento, preenchidos os requisitos legais, podem ser imputados à Hypera.
A decisão, que até a data de redação deste texto não possui caráter definitivo, determinou a realização de prova pericial técnica para apurar, em síntese: (i) se as irregularidades já existiam na data da operação; (ii) se as obras realizadas foram necessárias e proporcionais; e (iii) se os custos estão compatíveis com o mercado e com o escopo contratual.
Riscos contratuais relevantes e o setor da saúde
Este caso oferece importantes aprendizados para empresas que atuam com ativos imobiliários industriais e logísticos, especialmente no setor da saúde.
Muito embora a controvérsia tenha decorrido de exigências do Corpo de Bombeiros, as atividades empresariais no setor da saúde estão sujeitas a riscos regulatórios de diversas naturezas. As pessoas jurídicas atuantes no setor da saúde enfrentam a constante necessidade da obtenção de licenças sanitárias, ambientais, ligadas ao gerenciamento de resíduos e à qualidade dos seus produtos. O cumprimento de resoluções do INMETRO, do Ministério da Saúde, de Conselhos Regionais e de outros órgãos públicos das esferas municipal, estadual e federal são constantes preocupações.
A responsabilidade pelo cumprimento de cada uma das exigências necessárias à obtenção ou renovação de licenças, certificações, alvarás, autorizações, registros, entre outros, deve, preferencialmente, ser objeto de atenção dos contratantes já no momento em que é estruturada a operação econômica. Cláusulas de regularização técnica devem ser redigidas com precisão, prevendo critérios objetivos e prazos claros. Ainda assim, mesmo quando adotadas todas as precauções contratuais possíveis, como se observa do caso Newport vs. Hypera, pode haver posterior divergência das partes na interpretação de suas obrigações e das condutas por elas esperadas. Neste momento, compete às equipes jurídicas de contencioso avaliar os elementos existentes e as chances de êxito em uma disputa judicial ou arbitral.
Em litígios complexos, além da importância de serem suscitadas todas as teses jurídicas cabíveis, as provas assumem especial destaque. As comunicações entre os envolvidos, o registro das condutas adotadas e os documentos que demonstram os prejuízos que a parte entende ter sofrido são de grande utilidade para que os advogados possam organizar os fatos e demonstrar ao Judiciário – ou ao tribunal arbitral – o direito de seu cliente. Além disso, a prova pericial técnica revela-se protagonista em disputas contratuais complexas. Nada obstante o valor potencialmente elevado deste tipo de prova, o esclarecimento dos fatos auxilia a subsequente aplicação das teses de direito invocadas e, consequentemente, na resolução da controvérsia.
Conclusão
O caso Newport vs. Hypera ilustra como contratos empresariais no setor da saúde podem gerar litígios de alta complexidade, exigindo atuação estratégica desde a fase de negociação até a gestão do contencioso. A jurisprudência tende a levar em consideração as peculiaridades contratuais e as provas de cada caso na solução dos litígios. A conformidade normativa e, sobretudo, a demonstração dos riscos assumidos por cada contratante são determinantes no resultado alcançado em casos envolvendo a responsabilidade pela obtenção/renovação de licenças perante os órgãos públicos.
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