Recuperação judicial do produtor rural: proteção estratégica do negócio em tempos de crise

Luiz Bernardo Kämpf Amaral

Breno Marcel Peres de Oliveira
Introdução
O Brasil assistiu a um recorde preocupante em 2024: mais de 2,2 mil pedidos de recuperação judicial foram registrados, o maior número da história até então, segundo a Serasa Experian. E apenas no primeiro semestre de 2025, já são 4.965 companhias em recuperação judicial, das quais 1.163 tiveram seus pedidos ajuizados até 31.07.2025.
A instabilidade econômica e política não escolhe setor, mas atinge em cheio o coração do país: o agronegócio, especialmente sensível às mudanças climáticas imprevisíveis, à montanha-russa nos preços das commodities, à alta incessante nos custos de produção, aos limites de acesso a crédito e juros altos e às recentes tensões comerciais e políticas internacionais envolvendo tarifas e sanções.
Todos esses fatores formam uma tempestade que pode levar até o mais preparado produtor rural a uma situação de superendividamento.
Neste contexto, a recuperação judicial (RJ) deixou de ser um instrumento exclusivo de grandes corporações para se tornar uma ferramenta de sobrevivência acessível e poderosa para o produtor rural, inclusive como pessoa física. Representa um caminho legal para reorganizar as finanças, preservar sua atividade e garantir a continuidade de um negócio vital para numerosas famílias, no Brasil e no mundo.
O que é, na prática, a recuperação judicial?
A recuperação judicial é um procedimento legal que funciona como uma estratégia de reorganização econômica e financeira supervisionada pela Justiça. Prevista na Lei nº 11.101/2005 (reformada pela Lei nº 14.112/2020), ela tem como finalidade central preservar a atividade econômica viável, garantindo a manutenção da produção, dos empregos e da função social da empresa ou do produtor rural.
Na prática, a RJ é uma espécie de “trégua obrigatória” entre devedor e credores, que impede a pulverização de cobranças individuais e cria um ambiente controlado de negociação coletiva.
Ao ajuizar o pedido, o produtor rural obtém o chamado stay period: um prazo inicial de 180 dias em que ficam suspensas todas as ações de execução, penhora e cobrança. Esse período de proteção é uma oportunidade estratégica para que o produtor consiga:
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Organizar suas finanças e contas, mapeando o passivo total;
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Negociar coletivamente com os credores, evitando sofrer pressões isoladas e descoordenadas;
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Elaborar e apresentar um Plano de Recuperação Judicial (PRJ), documento que detalha como pretende pagar suas dívidas, com prazos e condições ajustados à realidade do negócio;
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Manter a continuidade da atividade produtiva, preservando os bens e os recursos essenciais para a operação, condição essencial para que o plano seja viável e para que credores aceitem a proposta.
O diferencial da recuperação judicial está no seu caráter coletivo e vinculante: quando aprovado pela Assembleia de Credores e homologado pelo juiz, o plano se torna obrigatório para todos os credores, mesmo para aqueles que votaram contra.
Isso permite que o produtor tenha previsibilidade e segurança para executar sua estratégia de reestruturação.
É possível ver as seguintes situações no cotidiano do produtor:
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Um banco tenta bloquear judicialmente a conta do produtor para cobrar um financiamento rural;
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Um fornecedor ameaça tomar judicialmente parte da safra em razão de dívidas de insumos;
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Um credor busca a apreensão de máquinas agrícolas, essenciais para o plantio ou colheita.
Em todos esses casos, a recuperação judicial impede a execução imediata, protege os bens indispensáveis ao exercício da atividade e transfere a discussão para dentro do plano, em um processo ordenado e fiscalizado pelo Poder Judiciário.
Assim, para o produtor rural, a recuperação judicial não é apenas um mecanismo de defesa contra a pressão dos credores, mas um instrumento ativo de reconstrução e reestruturação planejada, que cria tempo, espaço e condições para renegociar dívidas, recuperar fluxo de caixa e preservar o legado do negócio.
O produtor rural pessoa física pode pedir recuperação judicial?
Sim. Esta questão foi definitivamente esclarecida pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) com o julgamento do Tema 1.145 dos Recursos Especiais Repetitivos, devendo provar que (i) exerce essa atividade há pelo menos dois anos, e (ii) ter registro na Junta Comercial quando protocolar o pedido de recuperação judicial.
O STJ estabeleceu que a prova desses dois anos de atividade pode ser feita por meio de diversos documentos, tais como:
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Declaração de Imposto de Renda Pessoa Física (DIRPF);
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Contratos de arrendamento ou parceria;
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Notas fiscais de compra de insumos e venda da produção;
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Livro Caixa Digital do Produtor Rural (LCDPR);
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Laudos agronômicos que atestem a atividade.
O registro na Junta Comercial, embora necessário, é uma formalidade que precisa ser cumprida apenas no momento de ingressar com o pedido, não sendo exigida a sua pré-existência por dois anos.
Quais dívidas entram no Plano de Recuperação?
O legislador estabeleceu como regra a submissão de todas as obrigações existentes até a data do ajuizamento do pedido ao chamado regime concursal. Trata-se dos créditos concursais, que serão reestruturados no Plano de Recuperação Judicial (PRJ).
Entre as dívidas típicas que integram esse conjunto, estão:
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Dívidas com fornecedores de insumos agrícolas: sementes, fertilizantes, defensivos e demais itens indispensáveis à produção;
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Contratos bancários e financiamentos em geral: operações de custeio, capital de giro, linhas de investimento rural, entre outros;
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Débitos trabalhistas: salários atrasados, verbas rescisórias e indenizatórias, com prioridade legal de pagamento;
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Obrigações cíveis diversas: contratos de compra e venda, arrendamentos, parcerias e outros vínculos que geraram dívidas antes do pedido.
Quais dívidas ficam fora da recuperação judicial?
Apesar da abrangência, nem todas as dívidas podem ser incluídas na recuperação judicial, pois algumas obrigações são tratadas pela lei de forma diferenciada. São os chamados créditos extraconcursais, que seguem um regime próprio de cobrança, mesmo durante o stay period de 180 dias.
Entre os principais, destacam-se:
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Dívidas tributárias: os tributos não se submetem ao plano de recuperação, mas têm soluções. O produtor rural pode (e deve) buscar os programas de parcelamento fiscal e transação tributária previstos em lei, muitas vezes com condições mais favoráveis do que o mercado privado;
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Créditos garantidos por alienação ou cessão fiduciária: operações em que o bem financiado já pertence formalmente ao credor, como o trator adquirido por financiamento fiduciário;
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Créditos oriundos de cooperativas;
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Operações de barter.
Sobre os bens adquiridos em alienação fiduciária: a lei também confere ao devedor a proteção durante os 180 dias do stay period, estabelecendo que esses bens não podem ser retirados da posse do produtor se forem essenciais à atividade produtiva, evitando a paralisação da operação.
O ponto crítico: cooperativas de crédito
Um dos temas mais controversos e de maior impacto prático na recuperação judicial do produtor rural envolve as dívidas com cooperativas de crédito.
A Lei de Recuperação Judicial e Falências estabelece em seu art. 6º, §13, que “não se sujeitam aos efeitos da recuperação judicial os contratos e obrigações decorrentes dos atos cooperativos praticados pelas sociedades cooperativas com seus cooperados”.
O STJ, ao julgar os Recursos Especiais n.º 2.091.441/SP e n.º 2.110.361/SP, entendeu que “o ato de concessão de crédito realizado entre a cooperativa de crédito e seu associado está dentro dos objetivos sociais da cooperativa, devendo ser considerado como ato cooperativo e, portanto, não sujeito aos efeitos da recuperação judicial”.
Segundo o STJ, o relacionamento entre cooperado e cooperativa não se equipara ao vínculo entre cliente e instituição financeira comum, mas decorre do próprio estatuto social da entidade cooperativa e da legislação específica que rege o cooperativismo.
Na prática, isso significa que:
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A cooperativa não é obrigada a renegociar os valores dentro do PRJ;
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Os contratos de crédito podem continuar sendo cobrados e executados paralelamente, mesmo com a empresa em recuperação;
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Em cenários de alta exposição financeira a cooperativas, essa exclusão pode comprometer a viabilidade da reestruturação.
É justamente nesse ponto que muitos planos de recuperação se tornam frágeis. Apesar de não haver posicionamento definitivo sobre a questão, o cenário atual exige que o produtor avalie cuidadosamente a sua estrutura de dívidas antes de optar pela RJ, considerando a participação das cooperativas em seu endividamento total.
Dívidas de CPR e barter
Além disso, em julgamento muito recente, de 15 de setembro de 2025, o Superior Tribunal de Justiça julgou o Recurso Especial n.º 2.178.558/MT, no qual fixou entendimento de que o crédito decorrente de cédula de produto rural (CPR) também será excluído da RJ, desde que em uma das seguintes hipóteses:
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Se a CPR tiver liquidação física;
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Se a CPR representar operação barter;
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Se o descumprimento da obrigação na CPR não for decorrente de caso fortuito ou força maior.
Como foi destacado no julgamento, a operação de barter é o negócio jurídico no qual o credor fornece insumos para viabilizar a atividade agrícola e recebe como pagamento o produto agrícola, sendo representada por cédula de produto rural (CPR).
Na prática, sabe-se que esse é um negócio amplamente adotado pelos produtores rurais junto a grandes fornecedores de insumos, responsável pela estruturação e viabilização de boa parte da atividade produtiva. Por isso, esse fator também exige grande atenção do produtor rural.
Conclusão: um instrumento estratégico, mas com limites
A recuperação judicial do produtor rural é uma ferramenta poderosa, mas não absoluta. Ela possibilita a renegociação ampla com bancos, fornecedores e credores trabalhistas, garantindo tempo e condições para a reorganização da atividade.
Contudo, a exclusão de certos créditos da proteção conferida pela recuperação judicial, especialmente os créditos fiscais e aqueles decorrentes de operações realizadas com cooperativas de crédito, exige planejamento estratégico e acompanhamento jurídico especializado para que o processo não se torne inviável.
Mais do que um remédio legal, a RJ deve ser compreendida como parte de uma estratégia de gestão de crise, a ser utilizada com responsabilidade, visando preservar a continuidade da atividade rural, a função social da propriedade e a segurança econômica de famílias e comunidades inteiras.
O cenário de recorde nos pedidos de recuperação judicial acende um alerta, mas também destaca a importância de conhecer as ferramentas legais disponíveis para a gestão de crises. Para o produtor rural, a RJ é um direito e um instrumento estratégico que pode significar a sobrevivência e a perpetuação de seu legado.
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