A nova lei de improbidade administrativa e seus aspectos mais polêmicos
Ana Paula Muggiati dos Santos Thomé
O conceito de improbidade administrativa provoca amplo debate na comunidade jurídica, especialmente a partir da mudança recente na legislação específica. Porém, de modo amplo, é possível defini-la como a desonestidade no tratamento da coisa pública por parte dos administradores, funcionários públicos e quem a eles se equiparem, nos termos da lei.
A Constituição Federal consagrou o instituto da improbidade administrativa, precisamente no § 4º, do art. 37, ao elencar as possíveis sanções, em caso de prática de atos considerados ímprobos, sem prejuízo ainda da ação penal cabível.
A Lei n. 8.429/92 foi a responsável por definir quais são os atos de improbidade, seus sujeitos e respectivas sanções, fixando também normas processuais necessárias à propositura da ação de improbidade. Referido diploma foi elaborado para conferir efetividade ao art. 37, § 4°, da Constituição Federal, estabelecendo, exemplificativamente, as hipóteses de atos de improbidade administrativa que importam enriquecimento ilícito, que causam prejuízo ao erário, bem como que atentem contra os princípios da administração pública, em seus artigos 9º, 10º e 11º, respectivamente.
Recentemente, com o advento da Lei n. 14.230/21, a Lei de Improbidade Administrativa (LIA) sofreu a mais significativa alteração desde sua entrada em vigor no ano de 1992.
A nova Lei de Improbidade modificou não só o regime sancionatório, alterando a extensão das penas impostas aos agentes, como também diversas regras de procedimento e titularidade da ação, o prazo do inquérito civil, os tipos de improbidade administrativa, bem como inseriu o instituto da prescrição intercorrente entre os seus dispositivos. Além disso, estabeleceu a necessidade da comprovação do dolo para a tipificação de qualquer ato de improbidade – o que a jurisprudência já vinha acolhendo – bem como a modificação dos prazos prescricionais e a imposição de rol taxativo para condutas que antes eram consideradas meramente exemplificativas.
A reforma da lei causou muita polêmica, na medida que, para parte da comunidade jurídica, ela veio flexibilizar a responsabilização dos agentes sujeitos a ela, ao passo que, para outra, a nova LIA afasta os temores dos bons gestores públicos, uma vez que o rigor da lei anterior desencorajava-os a assumir essas funções.
Como antes mencionado, dentre as principais mudanças na LIA, a reforma, realizada pelo advento da Lei n. 14.230/2021, introduziu, expressamente, regra que estabelece a necessidade de comprovação do elemento subjetivo – dolo – para a caracterização do ato de improbidade administrativa. Anteriormente, apenas o artigo 5º, agora revogado, e o art. 10º, que determina os atos que geram prejuízo ao erário, admitiam a modalidade culposa.
Em relação ao dolo, a nova LIA passou a exigir que este seja específico. Em linhas gerais, dolo significa a vontade livre e consciente do agente na prática da conduta. Mas o dolo específico exige, ainda, que a conduta voluntária tenha por objetivo um fim ilícito. O § 3º, art. 1º da Lei n. 8429/92, é categórico ao, assim, dispor “o mero exercício da função ou desempenho de competências públicas, sem comprovação de ato doloso com fim ilícito, afasta a responsabilidade por ato de improbidade administrativa”.
Da mesma forma, o § 2º, do art. 10 da LIA, reforça a ideia do dolo específico, posto que preleciona “a mera perda patrimonial decorrente da atividade econômica não acarretará improbidade administrativa, salvo se comprovado ato doloso praticado com essa finalidade.” Essa, aliás, foi considerada a maior mudança da nova LIA, uma vez que suprimiu a figura culposa desse diploma legal.
Antes de se adentrar em alguns dos principais pontos dessa inovação legal, é importante acrescentar que o termo inicial de sua vigência, bem como a aplicação da nova lei aos casos em andamento (retroatividade lei), causou intenso debate no meio jurídico até que, em agosto/2022, em sede de repercussão geral (ARE 843.989), o Supremo Tribunal Federal fixou 04 (quatro) teses sobre a novel legislação, a saber:
1) É necessária a comprovação de responsabilidade subjetiva para a tipificação dos atos de improbidade administrativa, exigindo-se – nos artigos 9º, 10 e 11 da LIA - a presença do elemento subjetivo - DOLO;
2) A norma benéfica da Lei 14.230/2021 - revogação da modalidade culposa do ato de improbidade administrativa -, é IRRETROATIVA, em virtude do artigo 5º, inciso XXXVI, da Constituição Federal, não tendo incidência em relação à eficácia da coisa julgada; nem tampouco durante o processo de execução das penas e seus incidentes;
3) A nova Lei 14.230/2021 aplica-se aos atos de improbidade administrativa culposos praticados na vigência do texto anterior da lei, porém sem condenação transitada em julgado, em virtude da revogação expressa do texto anterior; devendo o juízo competente analisar eventual dolo por parte do agente;
4) O novo regime prescricional previsto na Lei 14.230/2021 é IRRETROATIVO, aplicando-se os novos marcos temporais a partir da publicação da lei". (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário com Agravo 843.989 – PR. Min. Relator: Alexandre de Moraes. Data de Julgamento: 18/08/2022. Data de Publicação: 18/08/2022) (Em destaque)
A partir daí, restou pacificada a questão, aplicando-se imediatamente a lei nova, no que diz respeito à exigência de dolo específico, para a caracterização do ato de improbidade administrativa nas ações dessa natureza em andamento. E restou definida a aplicação dos marcos temporais para a declaração da prescrição intercorrente apenas após a publicação da lei (outubro/2021).
Aliás, o regime prescricional da Lei de Improbidade Administrativa sofreu severas modificações com a Lei n. 14.230/2021, não só em relação ao seu lapso temporal como também no tocante ao termo inicial.
Antes da Lei n. 14.230/2021, o regime prescricional era regulado pelo art. 23, da Lei n. 8429/92 e previa o prazo de 05 (cinco) anos para o ajuizamento da ação de improbidade administrativa, a partir de 03 (três) hipóteses legais, basicamente contadas após o término do mandato do agente público. Agora, a matéria da prescrição, também regulada no art. 23, caput, confere o prazo de 08 (oito) anos contados da ocorrência dos fatos. Tal alteração causou enorme desconforto, especialmente para os titulares de ações dessa natureza, uma vez que entendem que os fatos, normalmente, surgem somente após o término dos mandatos, o que reduz significativamente o prazo para apuração e ajuizamento dessas ações.
No tocante à prescrição intercorrente, a nova legislação estabelece marcos interruptivos para os prazos prescricionais, previstos nos incisos I a V do dispositivo legal. Contudo, os parágrafos 4º e 5º, do artigo 23, discorrem sobre as causas interruptivas da prescrição, determinando o recomeço da contagem pela metade da prescrição inicial¹.
Sem embargo das opiniões contrárias, esses marcos interruptivos vieram acalentar as esperanças daqueles que, inseridos no polo passivo dessas demandas, sofrem com a demora na tramitação desses longos e intermináveis processos, muitas vezes com bloqueio total de seu patrimônio. De igual modo, a inserção da prescrição intercorrente também veio a atender o princípio da duração razoável do processo, até então mitigado em detrimento do procedimento moroso e rígido que a antiga legislação impunha.
Por fim, outra modificação significativa, trazida pela Lei n. 14.230/21, diz respeito à alteração do rol exemplificativo de condutas ímprobas, descritas no artigo 11 da LIA, para um rol taxativo.
No total, 09 (nove) incisos da redação anterior foram revogados ou alterados pela nova LIA. Isso porque a nova redação alterou a parte final, do artigo 11, caput, substituindo a expressão “notadamente” por “caracterizada por uma das seguintes condutas”, demonstrando que o rol do artigo 11 passa a ser taxativo.
Assim, para que o ato do agente público possa ser enquadrado pelo artigo 11 da Lei de Improbidade, passa a ser imprescindível que a conduta viole não só os princípios da administração pública, como também esteja prevista especificamente em um dos seus incisos.
Não há como negar a relevância e a importância dessas alterações introduzidas pelo novo diploma legal, que trata da improbidade administrativa. Na ausência de consenso, certo é que somente o tempo dirá se alterações serviram para privilegiar o interesse público e a celeridade da justiça, ou para incentivar práticas condenáveis e desvios no exercício de funções tão importantes para a sociedade.
¹ “§ 4º O prazo da prescrição referido no caput deste artigo interrompe-se:
I - pelo ajuizamento da ação de improbidade administrativa;
II - pela publicação da sentença condenatória;
III - pela publicação de decisão ou acórdão de Tribunal de Justiça ou Tribunal Regional Federal que confirma sentença condenatória ou que reforma sentença de improcedência;
IV - pela publicação de decisão ou acórdão do Superior Tribunal de Justiça que confirma acórdão condenatório ou que reforma acórdão de improcedência;
V - pela publicação de decisão ou acórdão do Supremo Tribunal Federal que confirma acórdão condenatório ou que reforma acórdão de improcedência.
- 5º Interrompida a prescrição, o prazo recomeça a correr do dia da interrupção, pela metade do prazo previsto no caput deste artigo.” (Em destaque)
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