Contratação e cota de pessoas com deficiência
Gustavo Pavani
Bruna Mafioleti
No último mês de julho, a Lei de Benefícios da Previdência Social, que também trata das cotas de pessoas com deficiência, completou 30 anos. A legislação dispõe que a empresa com 100 (cem) ou mais empregados está obrigada a preencher de 2% (dois por cento) a 5% (cinco por cento) dos seus cargos com trabalhadores reabilitados ou com deficiência, percentual que varia de acordo com o porte da empresa.
Segundo a Agência Brasil, atualmente, há cerca de 500 mil empregos para pessoas com deficiência em todo o Brasil. Porém, somente 4% da população brasileira com algum tipo de deficiência está empregada, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), Censo 2010.
Estes números demonstram que, apesar do longo período da lei, ainda há dificuldades para que seu cumprimento atinja todos, ou pelo menos um percentual significativo dos reabilitados ou das pessoas com deficiência.
A questão social envolvida também merece destaque, pois é inegável que, diante das dificuldades econômicas do país, os incentivos governamentais em tornar acessível a vida dos cidadãos com deficiência em geral e promover sua qualificação são insuficientes. Assim, na maioria das vezes fica a cargo das empresas proporcionar esse suporte, inclusive em razão da mencionada obrigação legal de cumprimento da cota, sem contrapartidas por parte do Estado que possam incentivar a contratação de empregados além da cota legal.
O cumprimento da cota mínima de contratação de PCD (Pessoa com Deficiência) é bastante controvertido. A imposição de multas da lei de cotas de PCD ainda é muito baixa, em razão da dificuldade de fiscalização de todos os empregadores que estão legalmente obrigados à contratação, o que acaba por desestimular as empresas a cumprirem a obrigação legal. Por outro lado, inúmeras empresas que buscam cumprira lei, principalmente em centros urbanos menores, esbarram na insuficiência de empregados reabilitados ou deficientes na região em que atuam para cumprimento da cota.
Ainda, algumas demandas administrativas e judiciais discutem se a ausência dos requisitos mínimos para o exercício da função é uma justificativa para as empresas não contratarem profissionais com deficiência, uma vez que parte dos tribunais entende que a obrigação de fornecer preparo técnico não é atribuição exclusiva do Estado, mas também da iniciativa privada, em atendimento à função social da propriedade.
Isso porque existem determinados ramos de atividades, como a construção civil pesada, nos quais é muito mais complexo encontrar função compatível para esses profissionais sem que se exponham a riscos.
A respeito do tema, o ministro do TST Ministro Guilherme Augusto Caputo Bastos ressaltou em recente decisão que, nas situações em que a empresa demonstra dificuldade em cumprir o número mínimo das contratações previstas no artigo 93 da Lei n.º 8.213/1991, esse Tribunal Superior tem afastado a aplicação de multa ou de qualquer outro tipo de penalidade, senão vejamos:
RECURSO DE REVISTA. APELO INTERPOSTO NA VIGÊNCIA DA LEI Nº 13.467/2017. NÃO CUMPRIMENTO DA QUOTA DE EMPREGO DESTINADA A DEFICIENTES REABILITADOS. VAGAS NÃO PREENCHIDAS. DIFICULDADE NA CONTRATAÇÃO. TRANSCENDÊNCIA. NÃO CONFIGURAÇÃO. NÃO CONHECIMENTO. Segundo dispõe o artigo 93 da Lei nº 8.213/1991, a empresa que possui 100 ou mais empregados está obrigada a preencher o seu quadro de pessoal com beneficiários da Previdência Social reabilitados ou portadores de deficiência habilitados, no percentual de 2% a 5% do total de cargos disponíveis. Acerca do referido preceito, não se pode negar que o seu objetivo é promover a inclusão social desses beneficiários da previdência, inserindo-os no mercado de trabalho pelo sistema de quotas. Com isso, quis o legislador pátrio dar efetividade aos princípios constitucionais da igualdade, da dignidade da pessoa humana e da função social da empresa, adotando políticas voltadas para esse grupo de pessoas, por meio das chamadas ações afirmativas, possibilitando, com isso, diminuir a desigualdade para esse segmento da sociedade. Nessa perspectiva, não há dúvida de que cabe à empresa cumprir com o dever social que lhe foi atribuído, adotando medidas direcionadas ao preenchimento do seu quadro de pessoal com deficientes e reabilitados, observando o percentual fixado pela lei. Não obstante a determinação legal, não há como penalizar a empresa, quando demonstrado que a não realização das contratações na quantidade exigida não dependeu de sua vontade. Isso pode acontecer, por exemplo, quando as atividades exploradas pelo empreendimento se mostram incompatíveis com a capacidade laboral do portador de deficiência ou reabilitado, impedindo-o de desempenhar a função que se encontra disponibilizada; ou quando, mesmo tendo sido tomadas as providências cabíveis, não surgem pessoas suficientes e aptas à contratação, dentro do percentual estabelecido pela lei. Importante ressaltar que, a despeito de o dispositivo em epígrafe fixar a obrigatoriedade da contratação de reabilitados e deficientes habilitados, não estabelece, de forma objetiva, de que modo deve a empresa proceder para atingir a cota mínima exigida. Sendo assim, não há como se aferir que a empresa não cumpriu com o encargo que lhe foi fixado pela lei, apenas pelo fato de não ter preenchido as vagas reservadas para os portadores de deficiência habilitados e reabilitados. Para as situações em que a empresa demonstra dificuldade em cumprir o número mínimo das contratações previstas no artigo 93 da Lei nº 8.213/1991, este Tribunal Superior tem afastado a aplicação de multa ou de qualquer outro tipo de penalidade. Precedentes. No presente caso, a partir do conjunto fático-probatório produzido no processo, o egrégio Tribunal Regional constatou que a reclamante envidou os esforços necessários para a contratação de portadores de deficiência habilitados e reabilitados. Dessa forma, concluiu que a empresa não estaria sujeita à multa pelo descumprimento do artigo 93 da Lei nº 8.213/1991, porquanto configurada a dificuldade de contratação. A decisão regional, portanto, está em conformidade com a jurisprudência desta Corte Superior acerca do tema, razão pela qual se aplicam à espécie os óbices previstos na Súmula nº 333 e no artigo 896, § 7º, da CLT. Nesse contexto, a incidência dos referidos óbices processuais é suficiente para afastar a transcendência da causa, uma vez que inviabilizará a análise da questão controvertida no recurso de revista e, por conseguinte, não serão produzidos os reflexos gerais, nos termos previstos no § 1º do artigo 896-A da CLT. Recurso de revista de que não se conhece". (RR-1002208-62.2017.5.02.0001, 4ª Turma, Relator Ministro Guilherme Augusto Caputo Bastos, DEJT 13/08/2021).
Portanto, verifica-se que, apesar do longo período de vigência da Lei 8.213/1991, ainda existem inúmeros desafios a serem superados, que vão muito além das exigências legais.
PCD e pandemia
Com o advento da pandemia do COVID-19, a Lei 14.020/2020, que instituiu o Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda e outras medidas complementares, vedou a dispensa dos empregados com deficiência durante o estado de calamidade pública (art. 17, V).
O Congresso Nacional não prorrogou o prazo de reconhecimento do estado de calamidade pública em todo o território nacional, previsto no Decreto Legislativo n.º 6, de 20 de março de 2020, por meio do qual reconheceu a ocorrência do estado de calamidade pública em todo o território nacional com efeitos, apenas, até 31 de dezembro de 2020.
Entretanto, no dia 30 de dezembro de 2020, o ministro do Supremo Tribunal Federal, Ricardo Lewandowski proferiu decisão em Medida Cautelar na ADI 6.625 MC/DF prorrogando o prazo de vigência de alguns dos dispositivos da Lei 14.020/2020, dentre os quais não estava, ao menos não de forma taxativa, o referido artigo 17, V.
Em virtude disso, surgiram questionamentos se de fato a garantia de emprego das pessoas com deficiência permanece, considerando que em verdade o estado de calamidade pública e a pandemia em virtude da COVID-19 ainda não se encerraram.
Inicialmente, é importante destacar que inclusive alguns governadores publicaram decretos de prorrogação do estado de calamidade, exatamente em razão da persistência da pandemia, o que, em teoria, poderia ser utilizado como fundamento para uma eventual insurgência contra a rescisão dos empregados reabilitados ou com deficiência.
Considerando a persistência da pandemia durante o ano de 2021, fundamento que embasou a concessão do benefício da garantia no emprego, e com base nos princípios basilares do Direito do Trabalho, especificamente da norma mais benéfica, entende-se que há fundamentação jurídica para a manutenção do referido direito.
Assim, pondera-se que as empresas devem ser cautelosas na dispensa de empregados reabilitados e com deficiência durante a pandemia, tanto para cumprimento de sua função social, quanto em razão da atual insegurança jurídica sobre o tema.