A tributação como espelho do Estado

Jackeline Piva Magalhães
Uma brevíssima perspectiva da tributação.
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Estado, Direito e o fundamento do poder de tributar
O Direito é um dos fenômenos mais notáveis na vida humana. Ser livre é estar no direito e, no entanto, o direito também nos oprime e tira-nos a liberdade. A natureza paradoxal do fenômeno jurídico implica a sua irredutibilidade a conceituações puramente lógicas e racionais. Isto porque, nos dizeres de Ferraz Junior, o direito é como “o mistério do princípio e do fim da sociabilidade humana”[1]. Na tributação, fenômeno jurídico que é, o paradoxo da liberdade é especialmente notável, porque, onde quer que haja um poder político estruturado, aí haverá um direito para regular e organizar a sociedade subjacente e, consequentemente, haverá um poder de tributar.
O fenômeno do tributo aparece de forma intermitente na história da sociabilidade humana; neste sentido, a historicidade da tributação exerce a função de dar a conhecer o processo evolutivo do direito tributário vigente e, ao mesmo tempo, estimular a todos na jornada para a realização da Justiça Tributária.
Apesar de ser questão ancestral, o “poder de tributar” e a prática da tributação nos moldes semelhantes aos atuais remonta aos acontecimentos do Século XVIII e início do Século XIX – especialmente a partir da “Revolução Científica” –, porque a efervescência marcante deste período serviu de estímulo para que muitos doutrinadores se dedicassem à tarefa de disciplinar o direito de forma objetiva. Da inauguração deste paradigma, resultou a formação de diversas disciplinas “autônomas”, tais como o Direito Constitucional, Administrativo, Financeiro e, também, o Direito Tributário.
O Direito existe porque as coisas, no mundo, estão divididas e encerradas em titularidades. A vida em sociedade é repleta de conflitos decorrentes de interesses antagônicos e ao Direito é dada a missão de criar estratégias resolutivas dos conflitos, que serão solucionados dentro do Estado[2], especialmente a partir da edição de normas jurídicas; cujo marco distintivo é a coercibilidade. A coercibilidade das normas jurídicas fundamenta e valida a interferência da aplicação da força, sempre que necessário, no cumprimento de uma regra de direito.
A coação inerente às normas jurídicas é monopólio do Estado; sendo que este, na definição de Dalmo Dallari, consiste em “uma ordem jurídica soberana cujo fim é o bem comum de um povo situado num território”. É com base nesta premissa que dizemos que o direito, a um só tempo, é instrumento de opressão e caminho para a liberdade e a justiça. Especialmente no ciclo atual de modernização científica, em que assistimos a tendência natural de ramificações que muitas vezes causam a sensação de um cenário caótico – que, inobstante, favorece o desenvolvimento de uma compreensão especializada dos principais problemas das sociedades, o desenvolvimento de novos princípios e a valorização da experiência de convívio com os atores sociais, bem como uma melhoria técnica para resolução de problemas sociais concretos.
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A Constituição Federal e o “duplo legado na modernidade”
No contexto do fim da Guerra Fria, o mundo assistiu não só a um retorno ao ideário anterior do liberalismo, mas a um repensar das bases do Estado. Este repensar decorreu da constatação de que o crescimento do Estado não garantia a distribuição de renda pretendida, por outro lado, estava longe de espelhar um sistema de tributação ótimo ou de eficiência econômica. A reformulação do Estado é condizente com o duplo legado da modernidade, traduzido pela concepção de um Estado Social e Democrático de Direito consagrado na Constituição Federal de 1988, que fundamenta o objetivo de integração entre valores sociais e liberais por meios democráticos e plurais, com foco no desenvolvimento socioeconômico e na preservação de direitos fundamentais como condição autolimitadora do poder estatal.
A Constituição Federal é o diploma que espelha a decisão dos representantes eleitos pelo povo. Ela possui natureza fundante, o que significa dizer que ela cria juridicamente o Estado; institui poderes; fixa competências, e estatui direitos. Nela também são previstos meios pelos quais serão angariados recursos financeiros necessários para atender o interesse público, bem como a forma de atuação do Estado-legislador, na elaboração de regras jurídicas de autolimite do poder. A sua extensão revela uma proposta reformista da realidade social, notadamente pela abundância de normas indutoras de transformação social e promoção de cidadania.
Também referida como “Constituição Cidadã”, a Carta estabelece uma ampla gama de atribuições e funções à Administração Pública. Esse acúmulo faz com que a busca pela efetividade constitucional continue sendo um enorme desafio, especialmente porque envolvida por um laço de dependência com as receitas auferidas pelo Estado.
Nesse sentido, o poder de tributar se apresenta como elemento essencial do governo. A partir da edição da norma fundamental, este poder é vertido em regras de competências, que por sua vez deverão ser observadas pelo Estado-legislador na edição das legislações tributárias instituidoras e regulamentares, cujas essências devem inescapavelmente serem compatíveis e validadas pela Constituição, que é uma espécie de local de convergência e validação para todas as normas do ordenamento jurídico.
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Competência tributária e limitações: duas faces de uma moeda
A Constituição Federal não cria efetivamente tributos, mas inaugura um sistema, oferecendo as diretrizes a serem observadas pelas pessoas políticas competentes. O legislador constituinte, ao instituir as diretrizes do Sistema Tributário Nacional, procedeu a um recorte metodológico em três grandes grupos, quais sejam: (a) repartição de competências tributárias entre os entes da Federação; (b) limitações ao poder de tributar, compreendendo os princípios e imunidades; (c) a partilha direta e indireta do produto da arrecadação dos impostos entres as pessoas políticas da Federação.
Em síntese, a competência tributária pode ser definida como a atribuição constitucional feita a um ente estatal dotado de Poder Legislativo. Isto porque ela somente pode ser exercida através da competente lei. A Constituição Federal, no artigo 150, I, veda expressamente a exigência ou majoração de tributo sem lei que o estabeleça. Os demais aspectos da legalidade são tratados no artigo 97 do Código Tributário Nacional, atribuindo à lei ordinária, além da instituição dos tributos, o papel de dispor sobre as obrigações tributárias, o crédito tributário, bem como as sanções ensejadas por infrações cometidas. Do que resulta que a efetiva criação de tributos depende do exercício da competência outorgada, pelo ente político, através do veículo idôneo e hábil: a lei.
Entretanto, não basta a mera edição de lei para que o ente exija um tributo, isto porque o poder de tributar outorgado não é irrestrito. Dizíamos que o legislador constituinte, ao instituir o Sistema Tributário Nacional, estruturou-o de forma que cada ente da Federação pudesse prover recursos a fim de atender aos seus dispêndios. Paralelamente, uma série de garantias foram instituídas em prol dos contribuintes para conter a sede arrecadatória do Fisco. E nem poderia ser diferente, tendo em vista a consagração da livre-iniciativa e do direito de propriedade como parâmetros fundamentais da ordem econômica e financeira.
Assim sendo, é intuitiva a conclusão de que o grande dilema do Direito Tributário é alcançar o equilíbrio entre os interesses arrecadatórios do Fisco e a proteção dos contribuintes. Na busca pelo justo equilíbrio das posições jurídicas, as chamadas “limitações constitucionais ao poder de tributar” são o principal aliado dos contribuintes e responsáveis tributários. Elas estão positivadas no ordenamento jurídico através de princípios universais, são eles: legalidade, anterioridade, igualdade, competência, capacidade contributiva, vedação do confisco e liberdade de tráfego; que, contudo, não eliminam a existência de outros direitos e garantias consagrados posteriormente.
É importante destacar que, se por um lado a tributação é o principal instrumento de que se tem valido os estados capitalistas contra a ineficiente estatização da economia, por outro lado, é necessário que a carga tributária não se torne pesada ao ponto de desestimular a iniciativa privada como um todo, mas especialmente nos setores mais potencialmente rentáveis a investimentos. No Brasil, a carga tributária exageradamente elevada é incompatível com a qualidade dos serviços públicos essenciais prestados à população, fato que demonstra a falta de eficiência e praticabilidade da tributação e a falha estatal em sua missão de satisfazer o interesse público.
Nunca é demais reiterar que as limitações constitucionais ao poder de tributar não podem ser encaradas como proteções meramente formais – daí a importância de rechaçar as abordagens axiológicas superficiais, como forma de prestigiar, e efetivar, as liberdades materiais, como a justiça fiscal, a capacidade contributiva, a função social da propriedade e o desenvolvimento sustentável, explicitamente positivados na Constituição pela EC nº 132/2023, que inseriu no parágrafo 3º do artigo 145 os novos princípios regentes do Sistema Tributário Nacional, quais sejam: simplicidade, transparência, justiça tributária, cooperação, defesa do meio ambiente e atenuação da tributação com efeito regressivo.
Em um cenário ideal hipotético, o incremento desses princípios é louvável, com atenção especial à positivação do princípio da cooperação – tendo em vista a urgente necessidade da substituição integral da noção (ainda muito tolerada em nosso ordenamento) da relação de tributação como prerrogativa do poder soberano do Estado, em prol da já conhecida, mas ainda singela, noção de que a tributação é relação jurídica que inadmite práticas arbitrárias e condutas abusivas lamentavelmente recorrentes por parte da Administração Tributária.
Ao contrário do que ocorria no passado, a tributação precisa ser encarada sob uma ótica consensual, isto é, sob a noção de que os indivíduos, através de seus representantes, consentem com a instituição do tributo, na exata medida do justo e necessário para a satisfação do interesse público e da persecução do bem comum. Na exata medida, porque, do contrário, o autoritarismo seguirá imperando e inviabilizando o exercício, pelos cidadãos, de seus direitos fundamentais e liberdades materiais, esvaziando de sentido os novos princípios tributários e transformando-os em letra prematuramente morta.
[1] Ferraz Junior, Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação – 4 ed. – São Paulo: Atlas, 2003.
[2] Neste sentido, Miguel Reale ensina: “o Direito corresponde à exigência essencial e indeclinável de uma convivência ordenada, pois nenhuma sociedade poderia subsistir sem um mínimo de ordem, de direção e solidariedade”.
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