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10 anos do CPC/2015: desconsideração da personalidade jurídica e aspectos probatórios do incidente

Publicado em 30 Abril 2025

A autonomia patrimonial da pessoa jurídica: fundamentos e limites

O instituto da pessoa jurídica foi concebido para disciplinar a organização de pessoas ou de patrimônio reunidos com um propósito comum, conferindo-lhes unidade e identidade próprias perante o ordenamento jurídico. Trata-se de ficção legal, que atribui à entidade coletiva a capacidade de ser titular de direitos e obrigações de forma autônoma em relação às pessoas naturais que a integram.

Essa autonomia patrimonial, expressamente reconhecida pelo Código Civil como um mecanismo legítimo de segregação e alocação de riscos [1], possui finalidade econômica relevante, pois estimula o empreendedorismo, a captação de investimentos e a inovação. Em termos práticos, a constituição de uma sociedade empresária implica a criação de uma barreira jurídica — um verdadeiro véu — entre os bens dos sócios e o patrimônio da pessoa jurídica, de modo que, em regra, apenas os bens da empresa respondem por suas obrigações.

Entretanto, essa autonomia patrimonial não é absoluta. Visando coibir abusos e impedir a utilização da pessoa jurídica como instrumento de fraude, o ordenamento jurídico prevê hipóteses em que é possível levantar o véu da personalidade jurídica, atingindo diretamente o patrimônio de terceiros a ela vinculados. Nessas situações excepcionais, podem ser responsabilizados sócios, sócios ocultos, sociedades controladoras, coligadas ou integrantes de grupo econômico, conforme o caso concreto.

Desconsideração da personalidade jurídica: instrumento contra abusos

A desconsideração da personalidade jurídica, portanto, constitui medida excepcional prevista em diversos diplomas legais e, de forma geral, no Código Civil (art. 50) [2], que disciplina o afastamento da autonomia patrimonial nas hipóteses de desvio de finalidade ou confusão patrimonial.

Trata-se de um mecanismo voltado à efetividade da tutela jurisdicional, que visa impedir que o manto da personalidade jurídica seja utilizado de forma indevida para frustrar direitos de terceiros. Nessas hipóteses, desconstituída a separação patrimonial que a lei confere à pessoa jurídica, o credor poderá alcançar o patrimônio dos sócios para satisfazer o crédito devido – “redirecionando” a execução da dívida à pessoa abusadora –, impedindo que a autonomia societária sirva de escudo para fraudes.

Ausência de procedimento específico no CPC/1973

Embora a doutrina já defendesse a possibilidade de desconsideração, o Código de Processo Civil de 1973 (CPC/1973) não trazia norma específica regulamentando o procedimento para desconsiderar a personalidade jurídica. Na vigência do CPC/1973, cabia à doutrina e, principalmente, à jurisprudência construir soluções casuísticas para viabilizar a efetivação da desconsideração em juízo [3].

Nesse contexto, porém, não havia uniformidade sobre os aspectos procedimentais: discutia-se a forma do requerimento, se o magistrado poderia decretar a desconsideração de ofício, bem como em que momento e por qual meio se daria o exercício do contraditório e da ampla defesa pelo abusador atingido [4].

Sob o CPC/1973, consolidou-se o entendimento de que, inexistindo rito específico, o alcançado pela desconsideração poderia apresentar sua defesa após a medida ter sido deferida – ou seja, adotava-se um contraditório diferido ou postergado. O sócio usualmente era intimado somente depois de ter seus bens atingidos, podendo então opor os meios de impugnação cabíveis para contestar a decisão [5]. Por outro lado, a ausência de procedimento claro à época gerava insegurança jurídica e tratamentos díspares.

Avanços do CPC/2015: o incidente de desconsideração da personalidade jurídica (IDPJ)

Diante desse cenário de lacunas e debate jurisprudencial, o novo Código de Processo Civil de 2015 (CPC/2015) trouxe importantes inovações ao disciplinar expressamente o incidente de desconsideração da personalidade jurídica (IDPJ) nos arts. 133 a 137.

Uma primeira grande novidade foi explicitar que a desconsideração da personalidade jurídica deve seguir um procedimento próprio, incidente ao processo principal. O art. 133 estabelece que o incidente será instaurado a pedido da parte ou do Ministério Público, quando este atuar no feito [6]. Diferentemente do que se cogitava sob o CPC revogado, afasta-se qualquer possibilidade de decretação ex officio pelo julgador, na medida em que para deflagrar o incidente agora é indispensável a provocação da parte interessada [7].

Com o novo regramento processual, delineou-se de forma clara as etapas do procedimento. O incidente pode ser instaurado em qualquer momento do processo, seja na fase de conhecimento, no cumprimento de sentença ou na execução de título extrajudicial (art. 134, caput) [6]. Caso o pedido de desconsideração seja formulado já na petição inicial da ação, dispensa-se a instauração de incidente em apartado – o sócio ou pessoa jurídica demandada será citado para responder no próprio processo principal (art. 134, §2º) [6]. Nos demais casos, a instauração do IDPJ suspende o processo (art. 134, §3º) até sua resolução, evitando que a discussão acerca do alcance do patrimônio de terceiro ocorra paralelamente ao andamento normal da causa.

Contraditório e ampla defesa no IDPJ: novas garantias processuais

Superando a prática do CPC/1973, o novo código assegura como regra geral o contraditório prévio do sócio ou da pessoa jurídica cuja desconsideração se pretende. Instaurado o incidente, o abusador será citado para, no prazo de 15 dias, manifestar sua defesa e requerer as provas cabíveis (CPC/2015, art. 135) [6]. Assim, somente após encerrada a fase de instrução probatória do incidente é que o juiz proferirá decisão motivada, na forma de decisão interlocutória (art. 136).

Caso deferida a desconsideração, essa pessoa física ou jurídica passará a integrar o polo passivo da demanda, submetendo-se aos atos de constrição sobre seu patrimônio; se rejeitado o pedido, o incidente é encerrado e o processo principal retoma seu curso normal, podendo o autor arcar com sucumbência específica. Importa frisar que essa decisão que resolve o IDPJ é impugnável de imediato por agravo de instrumento (CPC, art. 1.015, IV), dada a relevância da questão decidida, mecanismo inexistente no regime anterior [8].

A importância dos elementos probatórios no pedido de desconsideração

Outro aspecto central trazido pelo CPC/2015 é a definição de encargos probatórios no incidente de desconsideração.

Alexandre Freitas Câmara ensina que “no ato de requerimento de desconsideração da personalidade jurídica, incumbirá ao requerente apresentar elementos mínimos de prova de que estão presentes os requisitos para a desconsideração (os quais, como visto, serão estabelecidos na lei substancial). É preciso, então, que sejam fornecidos elementos de prova que permitam ao juiz a formação de um juízo de probabilidade acerca da presença de tais requisitos” [9].

Para corroborar, o art. 134, §4º, do CPC/2015 condiciona a instauração do incidente à existência de elementos que indiquem a hipótese de desconsideração: “o requerimento deve demonstrar o preenchimento dos pressupostos legais específicos para a desconsideração da personalidade jurídica” [6].

O Superior Tribunal de Justiça já enfatizou que a desconsideração da personalidade jurídica exige demonstração específica e concreta do desvio de finalidade ou da confusão patrimonial – a mera dificuldade de solvência da empresa devedora, por si só, não autoriza a medida [10]. Para Flavio Tartuce, a insolvência ou falência podem servir como meros parâmetros de reforço para a desconsideração [11].

Em suma, não se pode confundir a inadimplência com abuso de personalidade: a falta de bens da empresa devedora é irrelevante se não vier acompanhada de indícios de fraude ou abuso, assim como a existência de bens não impede a desconsideração se houver prova de desvio ou confusão. O foco probatório está em revelar o comportamento abusivo do devedor através de sua pessoa jurídica.

Elementos de prova e indícios de abuso de personalidade

Não basta, portanto, formular alegações genéricas de fraude – é necessário apresentar indícios ou evidências concretas de desvio de finalidade, confusão patrimonial ou outro abuso de personalidade previsto em lei. Portanto, a petição inicial do incidente deve conter ao menos um início de prova, que será posteriormente aprofundada na fase instrutória específica.

Exemplos típicos de indícios citados na jurisprudência incluem: pagamentos de contas pessoais dos sócios com recursos da empresa; patrimônio social esvaziado deliberadamente após o surgimento de dívidas; manutenção de contabilidade paralela ou irregular; empresas do mesmo grupo transferindo ativos entre si sem contraprestação; sócios que misturam caixa da sociedade com suas finanças privadas, entre outros. Esses elementos, quando bem documentados, servem de base para uma prova indiciária, da qual o magistrado poderá inferir, com razoável segurança, a ocorrência do abuso de personalidade.

O ônus da prova acerca dos fatos que justificariam o afastamento da autonomia patrimonial recai, em regra, sobre o requerente do incidente [12]. Isso porque se trata de fato constitutivo do direito que o credor alega ter – o direito de estender a responsabilidade ao patrimônio de terceiro –, atraindo a geral prevista no art. 373, inciso I, do CPC/2015.

Considerações finais: segurança jurídica e efetividade na execução

Em uma década de vigência do CPC/2015, o incidente de desconsideração da personalidade jurídica mostrou-se um importante aliado dos credores na busca pela satisfação das dívidas, especialmente em casos de créditos elevados e devedores renitentes.

As inovações procedimentais – contraditório prévio, definição de ônus probatório, rito claro e possibilidade de ampla defesa – trouxeram maior previsibilidade à aplicação da desconsideração, permitindo a melhor estruturação de estratégias para atingir o patrimônio de sócios e empresas relacionadas envolvidos em manobras fraudulentas.

Conhecer em profundidade os aspectos probatórios do IDPJ é crucial, pois a forma como o credor articula as provas de abuso, bem como a habilidade em identificar e comprovar a existência de fraude ou confusão patrimonial, frequentemente faz a diferença no desfecho do incidente e, por conseguinte, na satisfação integral do crédito.


[1]: BRASIL. Código Civil, art. 49-A (incluído pela Lei nº 13.874/2019), caput e par. único – estabelece a autonomia patrimonial da pessoa jurídica em relação aos sócios.

[2]: BRASIL. Código Civil, art. 50, caput e §§1º-2º – redação dada pela Lei nº 13.874/2019 (Lei da Liberdade Econômica). Cf. também Superior Tribunal de Justiça – AgInt no AREsp 1.294.071/SP, Rel. Min. Marco Buzzi, j. 05/11/2019 (que reiterou ser imprescindível a prova de desvio de finalidade ou confusão patrimonial para autorizar a desconsideração, nos termos do art. 50 do CC).

[3]: NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de Direito Processual Civil. 13. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021. p. 1551-1553. O autor destaca que o CPC/1973 não previa o incidente de desconsideração, sendo a matéria desenvolvida jurisprudencialmente com base em construções doutrinárias (teoria maior e menor) e na analogia com outros institutos.

[4]: Neste sentido: REsp n.º 158.051/RJ; REsp n.º 211.619/SP; RMS n.º 12.872/SP; e RMS n. 14.168/SP.

[5] Precedentes: REsp n. 228.357-SP; REsp n. 418.385-SP; e REsp 1.954.015/PE.

[6] BRASIL. Código de Processo Civil, arts. 133 a 137. Destacam-se: art. 134, caput e §§2º-3º (cabimento do incidente em qualquer fase processual; desnecessidade de incidente se o pedido constar na petição inicial; suspensão do processo principal durante o IDPJ) e art. 135 (citação do sócio ou da pessoa jurídica para manifestação e requerimento de provas em 15 dias).

[7]: DIDIER JR., Fredie; CUNHA, Leonardo Carneiro da; OLIVEIRA, Paula Sarno Braga; ALMEIDA, Rafael. Curso de Direito Processual Civil: tutela jurisdicional, partes e processos nos tribunais – vol. 1. 12. ed. Salvador: Ed. JusPodivm, 2019, p. 409-410. Os autores ressaltam que o art. 133 do CPC/2015 delimita a instauração do incidente à provocação da parte ou do Ministério Público, vedando a atuação ex officio do juiz, o que representa mudança significativa em relação ao regime anterior.

[8]: WAMBIER, Teresa Arruda Alvim et al. Breves Comentários ao Novo Código de Processo Civil. 3. ed. São Paulo: RT, 2017, p. 434-435. Os comentaristas explicam que a decisão que resolve o incidente de desconsideração tem natureza interlocutória e, por expressa previsão legal, comporta agravo de instrumento (art. 1.015, IV), garantindo duplo grau de jurisdição sobre essa matéria sensível.

[9]: CÂMARA, Alexandre Freitas. O novo processo civil brasileiro. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2016, p. 99-100. Nesse sentido, o autor ensina que o requerente deve alegar os fatos que em tese configurariam as hipóteses de desconsideração, uma vez que a comprovação concreta poderá ser feita ao longo da instrução do incidente.

[10]: Superior Tribunal de Justiça. REsp 1.729.554/SP, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, 4ª Turma, j. 10/04/2018, DJe 15/05/2018. No caso, o STJ reformou acórdão do TJSP que exigia prova de inexistência de bens da devedora para admitir o incidente, ressaltando que tal requisito não consta do art. 50 do CC e que bastava ao credor indicar elementos de confusão patrimonial e fraude, os quais deveriam ser apurados no incidente.

[11]: TARTUCE, Flávio. Manual de direito civil. Volume único. 7. ed. rev. atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2017, p. 189.

[12]: NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de Processo Civil Comentado. 3. ed. São Paulo: RT, 2018, p. 804-805. Os autores frisam que, no incidente de desconsideração, incumbe ao requerente provar os fatos constitutivos do abuso de personalidade alegado, conforme a regra geral do art. 373, I, do CPC/2015, além de atender à exigência do art. 134, §4º (demonstração prévia dos pressupostos legais da desconsideração).

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